As pedras gravam a felicidade do peregrino
Entre a história, o património e a mística dos Caminhos de Santiago
Texto orginalmente publicado na revista Draft World Magazine, disponível em https://www.draft-worldmagazine.com/post/as-pedras-gravam-a-felicidade-do-peregrino
Cinco caminhos, partidas diferentes, sempre a mesma meta: Santiago de Compostela. Corria a década de noventa de um século agora guardado nos livros, nas cassetes, cd’s filmes e documentários. Os telemóveis não existiam, a internet dava os primeiros passos.
Sempre fui um entusiasta da História, um curioso pelo património, um “ensaísta” ávido em conhecer o passo etnográfico das gentes e dos lugares. Decidi entrar num daqueles comboios que percorriam a Europa (conhecidos como os interrails) e na primeira vez que me desloco a Madrid, descubro, em pleno mercado do Rastro, um opúsculo sobre as rotas medievais a Santiago de Compostela, como estas atraíram cavaleiros, monges, mestres pedreiros, menestréis, e ainda a história de um padre que andava a marcar os caminhos desde França até à ponta ocidental da Península Ibérica.
Tive curiosidade. No regresso à cidade que me viu nascer, a cidade do Porto, decidi-me em apanhar outro comboio, rumo a um destino que, em Madrid, me despertou profunda atenção. Santiago de Compostela, aqui vou.
Na capital da Galiza descobri que, apesar de ter nascido no seio de uma família católica, sabia muito pouco sobre os mais fiéis companheiros de Jesus, talvez por imaturidade, talvez porque a catequese foi muito pouco... Catequética.
Quando cheguei a Compostela senti uma energia inigualável, uma atmosfera que me empurrava para o coração do seu “casco” histórico, a catedral, onde fiquei a saber, pela voz de duas personagens que tive o privilégio de conhecer nesta primeira aventura “peregrina”, que naquele épico altar de arte repousava o Apóstolo Santiago Maior. Uma das figuras, o famoso “Zapatones”, o mais famoso “peregrino” da praça do Obradoiro, contou-me - entre fotografias que ia tirando com turistas – que há mais de mil anos, gentes de toda a Europa caminhavam dos recantos mais distantes do velho continente até Santiago, para se ajoelharem junto às relíquias do santo evangelizador de Espanha.
Falou-me ainda de tradições, do que comer entre as ruas do Franco e de Vilar e porque era sexta-feira havia “Queimada Galega” (uma bebida à base de bagaço, café, limão e açúcar, a que se ateia fogo) na associação “Lar das Meigas”. Lá, onde as bruxas más da mitologia galega, praticavam os seus “meigallos”, conheci o “Magico de Oz”, um “queimador” vestido de monge, com uma espécie de concha, pendurada por um fio vermelho, ao pescoço, que, à medida que ia mexendo um líquido azul flamejante, ia praguejando uma reza, um “conxuro”, como lhe chamam os galegos, quase impercetível (os meus conhecimentos de língua galega, naquela época, eram inexistentes). No final da teatral Queimada, fui falar com o ancião artista e tudo o que me falou despertaram em mim uma tremenda revelação: Tinha de fazer o Caminho de Santiago.
O “magico”, despido já das suas vestes feiticeiras, falou-me da concha, uma vieira, símbolo dos peregrinos de Santiago, falou-me das setas do Caminho que o tal padre sobre quem li em Madrid, Elías Valiña, mais conhecido como o “cura do Cebreiro”, ia pintando, mas, mais importante de tudo, falou-me como tudo começou e o ponto de partida de toda a história: Oviedo e a peregrinação que o rei das Astúrias, Afonso II o Casto, realizou ao túmulo de Santiago, recentemente descoberto por um ermita, de seu nome Paio, achamento legitimado por Teodomiro, à altura (entre os anos 830, 839) bispo da diocese de Iria Flavia, atual cidade de Padrón. E que Afonso II percorreu uma rota, que mais tarde se viria a chamar o “Caminho Primitivo”. Mas também me falou de um “caminho português”, de um caminho moçárabe (ou da Prata) e ainda do mais especial caminho de todos, o mais rico em património, história e lenda: o Caminho Francês. Sem esquecer Finisterra ou Muxia.
Eu estava hipnotizado enquanto ouvia falar de Carlos Magno e do seu sobrinho Rolando e a célebre batalha de Roncesvalles, de um livro (o Códex Calixitino) que funcionou como primeiro guia para peregrinos medievais, da Senhora do Pilar de Saragoça, das igrejas e castelos templários, dos mosteiros beneditinos e das grandiosas catedrais góticas de Burgos e de León. Mas também falou que havia um Caminho Português, e que esse partia...do Porto!
Um ano depois partia para Oviedo e aí começou a primeira das muitas aventuras, dos Caminhos de Santiago que já realizei, alguns deles, confesso, mais de que uma vez: Caminho Primitivo, Caminho Português, Caminho Francês, Caminho Inglês, Caminho de Finisterra. Da aventura ao estudo foi um salto.
Acabado o curso de comunicação social e de me cansar da carreira de jornalista (com quase 15 anos de experiência) voltei ao mais profundo amor da adolescência: o estudo do património e da História e a transmissão desse amor a todos os que estivessem dispostos a ouvir ou a ler.
Já como professor regressei às pedras do caminho e convenci estudantes de todas as idades (com especial destaque para os meus alunos da Universidade Sénior Contemporânea do Porto, alguns deles com mais de 80 anos) a acompanhar-me numa aventura dos tempos modernos, por entre destinos onde o tempo nem sequer passou, viciando-os com a atmosfera ainda pura dos “vieiros” a Compostela.
Os Caminhos de Santiago representam em mim a mais viva demonstração de uma relação telúrica entre a fé e as tradições celtas, que exploro com avidez, entre a meditação contemplativa à paz interior que apenas se alcança dormindo ao relento ao som dos mochos.
E é um vício que não se despega, que não há cura, que se intensifica cada vez que ouço uma nova lenda, como a dos galos de Santo Domingo de la Calzada (ou do nosso Galo de Barcelos), ou da Pedra Furada de Santa Leocádia, cada vez que troco contactos com peregrinos de “junto da porta” ou me junto com os do outro lado do mundo num qualquer albergue. Da Alemanha, Itália, França, Reino Unido e até do Japão, foram muitos os viandantes de Santiago que aprendi a chamar “amigos” à medida que me iam contando como pisar as pedras iam gravando a sua felicidade, acabando no final desejando sempre um efusivo e afetuoso “Bom Camiño”!
O Caminho de Santiago deu-me muito e nunca me tirou, fez crescer a minha “humanidade”, ajudando a pacificar-me a nível emocional, proporcionou-me viagens no tempo, a um período em que apenas contava eu e as pedras do Caminho, onde o tempo passava tão devagar como daquela vez em que o abade de Armenteira se perdeu no paraíso. Para mim o Caminho foi (e ainda é) o Edén, onde comi da árvore da sabedoria, onde escolhi o bem e extirpei o mal. Mas desta vez, Deus ficou feliz.
Ultreia et Suseia
Artur Filipe dos Santos | Doutorado em Comunicação e Património pela Universidade de Vigo, é professor universitário e investigador. Entusiasta dos Caminhos de Santiago, é o autor do blogue “O Meu Caminho de Santiago” e autor de vários artigos e palestras sobre a tradição jacobeia.
Comments