Burgos, Ourense e Matosinhos: Três Caminhos, Três Cidades, Três “Cristos” de Nicodemus
- Artur Filipe dos Santos
- 25 de jun. de 2018
- 4 min de leitura
(Permitido a transcrição completa e parcial deste artigo com a seguinte cita Santos, Artur Filipe. Burgos, Ourense e Matosinhos: Três Caminhos, Três Cidades, Três “Cristos” de Nicodemus. Porto, 25 de junho de 2018. Disponível em https://goo.gl/ajUNv3. Acedido a…)
A grande diferença entre o mito e a lenda é de que o mito surge sempre como forma de explicação para os fenómenos que a Humanidade, ao longo da sua história e sobretudo em períodos de maiores trevas culturais, não conseguiu perceber; já a lenda tem sempre um fundo de verdade, isto é personagens históricas que realmente existiram, lugares, eventos fantasiados que ao longo dos tempos se foram, como diz o provérbio, “aumentando” pontos.
A história desta publicação começa na Judeia, algum tempo tempo após a crucificação de Cristo e momentos antes de Santiago partir para a Hispânia. Nicodemus (a tal personagem real que faz deste relato não ser um mito mas sim uma lenda), um fariseu e membro do Sinédrio, defendeu Jesus diante dos restantes membros da assembleia judaica. Cedo se encantou pelos ensinamentos do “Salvador” e, no fim, ajudou José de Arimateia a retirar o corpo da cruz e a guardá-lo no sepulcro. Assim relata a história que atualmente se narra.

Nicodemus visita Jesus (1889), Henry Tanner, Pennsylvania Academy of the Fine Arts, Filadélfia, Estados Unidos.
A lenda diz que Nicodemus era um exímio artista com a madeira e um escultor habilidoso.
Na ânsia de perpetuar na memória de todos os que O amaram e daqueles que um dia poderiam ser tocados pela Sua palavra, Nicodemus teve a ideia (ou inspiração divina) de esculpir, em madeira, imagem de Cristo crucificado. Quantas foram a história não grava mas a lenda descreve: terão sido cinco.
Mas como é que três dessas supostas imagens vieram parar a lugares tão distantes como Burgos, Ourense ou Matosinhos? Ao que parece Santiago teve uma cota-parte de responsabilidade.
Ainda na esfera da lenda, a mesma diz que Nicodemus foi perseguido pelos judeus e romanos, assim como os Apóstolos, sobretudo os que eram mais próximos a Cristo: Pedro, João Evangelista e Santiago o Maior.
Um dia, o “Filho do Trovão”, assim lhe chamava Jesus terá dito a Nicodemus que deveria lançar as imagens ao mar para que estas não caíssem nas mãos dos judeus e com a esperança de que um dia pessoas crentes da nova fé pudessem resgatá-as das águas e erguerem altares condignos para as mesmas.
Às águas do norte da Hispania foi a imagem que agora se guarda, desde o séc. XIX na capela do Santíssimo Cristo da Catedral de Burgos, libertada do mar por um mercador burgalês regressado da Flandres que a encontrou dentro de uma caixa e, chegado a casa, a entregou aos cónegos de Santo Agostinho. Dizem os locais que eta imagem é a mais fiel das seis, já que esta está coberta de pele, o cabelo e as unhas são naturais e que a referida superfície capilar cresce, garantem!
Imagem do “Cristo de Burgos”, presente na Capela do Santíssimo Cristo de Burgos, Catedral de Burgos, Espanha. Fonte: http://www.catedraldeburgos.es
A Finisterra “aportou” outra imagem, capturada desta feita por pescadores galegos, que no passado e ainda hoje é objeto de grande devoção para as gentes da Costa da Morte:
“Santo Cristo de Fisterra,santo da barba dourada,veño de tan lonxe terra,/santo por che ver a cara.
(…)
Veño da Virxen da Barca,veño de abalar a pedra,tamén veño de vos ver,santo Cristo de Fisterra.”
A escultura crucificada, também coberta de pele, cabelos e unhas naturais e uma “barba” dourada conserva-se agora, desde o séc. XIV, na Capela do Santo Cristo na catedral ourensana.

Imagem do “Cristo de Ourense”, presente na Capela do Santo Cristo, Catedral de Ourense, Galiza, Espanha. Fonte: http://www.turismodeourense.gal
À praia de Matosinhos terá chegado supostamente a mais antiga das três, encontrada também por pescadores e camponeses que logo souberam erguer um templo para guardar tão viajeira relíquia.
Da variedade de imagens mencionada esta tinha duas particularidades: faltava-lhe um braço, perdido durante a tempestuosa viagem pelo “mare nostrum” e pelo “mare tenebrorum” até à costa matosinhense; a outra particularidade é que a imagem era oca e, segundo reza a lenda, Nicodemus terá guardado os instrumentos da paixão: a coroa de espinhos, os pregos, partes do madeiro da cruz original e até mesmo a placa “JNRJ” – Jesus de Nazaré Rei dos Judeus, ou ainda o Santo Sudário. E, claro, à semelhança dos exemplos anteriores, diziam as pessoas da terra que era a mais perfeita de todas as imagens alguma vez esculpidas do Senhor. Mas a história não termina aqui, como as gentes de Matosinhos e do norte do país bem sabem; certo dia uma habitante de Bouças que andava à apanha de lenha junto à praia deparou-se com um toro diferente de todos os outros mas sem nunca suspeitar que seria o braço que faltava da imagem Bom Jesus.
No momento em que acendeu a lareira e mandou para o fogo a lenha encontrada, algo estranho aconteceu: o tal toro de formato estranho saltava sempre que a senhora o atirava para a lareira e foi na última das terras que um milagre aconteceu: a sua filha, que até então fora sempre sempre muda começou a falar, e de uma forma bem audível, diz a tradição, avisou a mãe de que o exemplo de madeira “irrequieto” era nada mais nada menos que o braço ausente do Senhor de Bouças.
A mulher acorreu a avisar a restante população e quando todos acudiram, incluindo o “cura” (padre) de Bouças, logo trataram de colocar o braço que faltava na escultura incompleta. E é como se nunca de lá se tivesse separado.

Imagem do Bom Jesus de Bouças, altar-mor da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos.
A tradição continua, referindo que as restantes esculturas, para além das de Burgos, Ourense ou Matosinhos, se acharam em Luca, na Península Itálica e em Berito, atual Beirute, no Líbano.
Ainda hoje estas histórias são recordadas pelas gentes e relatadas aos peregrinos que alcançam Burgos pelo Caminho Francês, Ourense pela Vía de la Plata (ou Caminho Mozárabe) ou Matosinhos (Caminho Português da Costa).
São relíquias que o rigor dos tempos não derrota, lendas que o passar dos séculos não apaga e que oferece ao Caminho de Santiago uma semântica espiritual e divina, empragnada de uma das mais importantes manifestações de património imaterial: a tradição oral.
Ultreia et suseia!
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