Galos, Galinhas e Ovos de Ouro no Caminho de Santiago
Texto originalmente publicado no blogue O Meu Caminho de Santiago (permitido a transcrição completa e parcial deste artigo com a seguinte cita Santos, Artur Filipe. Galos, Galinhas e Ovos de Ouro no Caminho de Santiago . Porto, 15 de julho de 2020. Disponível em https://omeucaminhodesantiago.wordpress.com/2020/07/15/galos-galinhas-e-ovos-de-ouro-no-caminho-de-santiago/. Acedido a…)
Quem dos peregrinos que pisaram o Caminho Português Central a caminho de Compostela não conhece o restaurante Pedra Furada, os amigos António Herculano e D. Angelina e a iguaria do Galo Assado? Quem não assinou um dos livros da coleção do Sr. Herculano que guarda com zelo e carinho e que Nuno Rodrigues, da Câmara Municipal de Barcelos lhes chamou de “património imaterial que está encerrado e que rememoram memórias de milhares de peregrinos”?
Os amigos António Herculano e D. Angelina, restaurante Pedra FURADA, Barcelos
Pois então numa das incursões ao “Pedra Furada”, desta feita com os os meus alunos da USC, tive o grato gosto de convidá-los a ouvir algumas das muitas histórias do Sr. Herculano. E uma delas dizia respeito ao facto de a lenda do Galo de Barcelos não ser única e muito menos original, para desconhecimento de muitas das gentes de Barcelos. O conhecimento de outras lendas “galináceas” foi transmitida, na atualidade tal e qual como no passado, por peregrinos das mais variadas partes da Europa.
O que acontecia, para a espanto do Sr. Herculano, é quando este começava a contar a história do Galo de Barcelos, logo um peregrino relatava que também em Espanha, que também na França existiam relatos milagrosos envolvendo galos ou galinhas.
E agora adentrando um pouco mais na matéria histórica, certo é que desde sempre o galo, a galinha ou mesmo o casal, mas sobretudo a figura do galo, detém um caráter simbólico muito forte.
Se nos fixarmos primeiramente na simbologia cristã, o galo simboliza o retorno da luz do dia após as trevas da noite, como Cristo realizou no plano espiritual, porque Ele fez passar o mundo das trevas para a luz com os seus ensinamentos, por toda a sua vida, por sua morte e ressurreição; o galo é uma representação de Cristo anunciando o novo dia de fé. O canto do galo desperta as pessoas ao amanhecer para chamá-las para a vida cristã, criando uma passagem, um caminho do ser humano do mal para o bem e que recordamos todos os anos na tradição da Missa do Galo, na noite de Natal.
Mas também nos recorda a passagem da vida de Jesus quando confessa ao Apóstolo Pedro que “antes do galo cantar, hás-de-me negar três vezes”. Um dos símbolos que identifica S. Pedro em muitas representações do Santo é precisamente o galo, para além das chaves do paraíso.
S. Pedro com o galo e as chaves do Paraíso, Igreja de Santa Maria Madalena de Besançon, França
O galo é, inclusivamente, um símbolo escatológico porque, assim como anuncia o novo dia, o cristão espera o dia em que o Jesus regressará.
Desta forma, não é de todo difícil encontrar imagens e iconografias de galos pelas igrejas um pouco por todo o mundo cristão.
Mas a simbologia do galo perde-se no tempo e leva-nos inclusivamente à China, ao Japão. Símbolo de orgulho está presente na cultura e religiosidade grega, associado ao Deus Zeus, Artémis, ou Apólo. Mas também vamos encontrar o galo no Induismo, no judaismo e também no Islamismo, já que terá sido um galo a avisar Maomé para a presença do Anjo Gabriel.
Não espanta, portanto, que este animal ovíparo esteja presente na “auto-estrada” cultural e simbólica representada pelo Caminho de Santiago.
A LENDA DO “PENDÚ-DEPENDÚ” DE TOULOUSE
Certo é que, no contexto das lendas e tradições do Caminho, as lendas de Santo Domingo de La Calzada e de Barcelos (ver artigo “O que têm em Comum Barcelos e Santo Domingo de la Calzada”) são as mais discutidas, contudo, existe em Toulouse (uma das paragens essenciais e um dos tramos do Caminho Francês em terras gaulesas) uma lenda que se encontra presente no Codex Calixtinus, em que também encontramos a figura do galo e também a personagem do enforcado, tal e qual Santo Domingo e Barcelos. Mas…
Vamos à lenda:
Segundo o relato do próprio papa Calisto II, um peregrino alemão peregrinou a Compostela acompanhado pelo seu filho. Ao chegar a Toulouse procuraram um albergue.
Contudo a escolha correu mal: o dono do albergue envenenou o pai e o filho e escondeu uma taça de prata na saca de um dos peregrinos (alguns relatos referem mais precisamente a do filho). No dia seguinte, depois de abandonarem o albergue, o estalajadeiro perseguiu-os, acusando-os de roubo. Rapidamente foram presos e arrastados à presença de um juiz.
O juiz, perante a “evidência dos factos” (a taça de prata na saca) considerou-os culpados, sentenciando que todos os seus pertences ficariam na posse do dono do albergue e que pai ou filho, um pelo menos, seria condenado à forca.
Pai e filho debateram sobre quem deveria ser enforcado, já que um queria ir no lugar do outro. Certo é que o juiz se decidiu pelo filho e assim foi.
O pai continuou a sua peregrinação e ao regressar, na passagem por Toulouse, quis ver o corpo do seu filho. Alguns relatos da lenda – entre eles o de Jacques de Voragine, arcebispo de Génova e autor da célebre obra “La Légende Dorée”, que relata a vida e os milagres de variadíssimos santos – referem que o homem, acreditando que o filho estaria enterrado em parte incerta, decidiu seguir caminho sem parar na cidade. Contudo, avisado pelo cantar de um galo, mudou de ideias. Foi ao local onde o filho foi enforcado e o corpo ainda lá estava, pendurado na corda. Ao parar junto do corpo, o pai começa a chorar de lamento quando de repente o seu filho desperta e consola-o dizendo: “gentil pai, não chore, nunca estive tão bem”. Perante tal milagre o pai correu por toda a cidade a gritar que o filho estava vivo. As gentes de Toulouse, perante tal acontecimento divino consideraram o filho do peregrino inocente pela graça de Deus, e libertaram-no enforcando de seguida o dono do albergue. Esta é uma lenda que, segundo o relato de Voragine, terá ocorrido em 1090, já a de Santo Domingo de la Calzada terá acontecido em 1130, ao passo que a lenda do galo de Barcelos situa-se algures entre o séc. XIV, séc. XV.
Certo é que tanto esta lenda francesa com a de Santo Domingo encontram-se espalhadas um pouco por toda a Europa, encontrando facilmente representações em território franco, como por exemplo na capela de Saint Jacques- Prelles-St Martin-de Queyrières, na via Francígena, que liga Itália a França, mas também encontramos em Nuremberga ou na República Checa.
Fresco com a lenda do Galo, presente na capela de Saint Jacques- Prelles-St Martin-de Queyrières, França
Mas como o título desta publicação refere, nem só de galos nascem lendas. Existe uma que nos fala numa “Galinha dos Ovos de Ouro” e nos Cavaleiros Templários.
No Caminho Francês, entre Carrión de los Condes e Sahagún, existe uma pequenina povoação, com não mais do que 200 habitantes, conhecida como Terradillo de los Templarios.
Como o próprio nome o refere, esta terra teve como senhores os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, a Ordem dos Templários. Alguns relatos da lenda dizem que os templários guardavam, no Alto Torbosillo, numa capoeira escondida, uma galinha que “paria” ovos de ouro! E que, quando foram perseguidos por ordem de Clemente V, terão fugido com a galinácea para parte incerta. No entanto, o relato mais comum fala de um “cura” (padre) da antiga paróquia de San Estebán, precisamente em Terradillo de los Templarios, que todos os anos tinha o hábito de levar um ovo de ouro a Compostela e oferecia-o ao arcebisbo de Santiago. Um dia, o arcebispo perguntou-lhe de onde vinham esses ovos, ao que o padre confessou virem de uma galinha. Movido, que sabe, pela cobiça, o arcebisbo ordenou ao padre que trouxesse a galinha no ano seguinte para que pudesse contemplar tal milagre “dourado”. O “cura”, com medo que a galinha caísse nas mãos do Cabido de Compostela, entregou-a aos cavaleiros Templários que a enterraram no Alto Torbosillo.
Lendas de “pôr a crista em pé” e como toda a lenda tem um fundo de verdade estas chegam-nos aos nossos dias, impulsionadas pela “auto-estrada” cultural europeia por excelência: o Caminho de Santiago.
Ultreia et Suseia!
Bibliografia:
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